segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Transexualismo: mudança de nome e gênero sexual concedida na Justiça do Acre

Alfredo Henrique Assunção de Andrade
Bacharel em Letras Português
Maurício Generoso de Oliveira Neto
Bacharel em Administração
Curso Direito Faculdade da Amazônia Ocidental





RESUMO


O presente artigo tem como escopo a discussão jurídica sobre a decisão da 2ª Vara de Família da Comarca de Rio Branco, no estado do Acre, de conceder o direito de mudança de nome e gênero sexual no registro civil de nascimento da requerente que obteve diagnóstico de transexualidade. Nitidamente trata-se de assunto bastante delicado por englobar a área social, familiar, jurídica e personalíssima do indivíduo e também por provocar o judiciário para julgar com base em princípios contidos na Constituição Federal que devem permear a sociedade, a analogia e os costumes gerais. O método de estudo utilizado é o raciocínio dedutivo, ligando afirmações e premissas para se chegar em uma conclusão, assim como a utilização de bibliografias de doutrinas e jurisprudências como base de apoio direto.


PALAVRAS-CHAVE: Transexualidade; família; registro civil de nascimento; dignidade da pessoa humana; STF.



É de fundamental importância o conhecimento acerca do significado do transexualismo para o completo entendimento do trabalho. Trata-se do indivíduo que não consegue se adaptar ao seu gênero sexual, ou seja, tem por vontade própria adquirir todas ou boa parte das características sexuais opostas às dele(a), rejeitando de certa forma sua própria sexualidade, ocorrendo a identificação sexual ou psíquica com o gênero diverso. De acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM), no artigo 3º da Resolução 1652/02, o transexualismo obedece aos subsequentes critérios:

a) desconforto com o sexo anatômico natural;
b) desejo expresso de eliminar genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;
c) permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos;
d) ausência de outros transtornos mentais.


E é com base nesse diagnóstico que em 2012, foi pleiteada na justiça acreana pela requerente transexual a ação de retificação de registro civil. Na petição a parte conta que nasceu com o sexo feminino mas que desde os 5 anos de idade percebeu que não se identificava com o seu sexo, pois, psicologicamente falando, sentia que pertencia ao sexo masculino.

Por isso, desde a infância existiu o sofrimento e o constrangimento das roupas e brincadeiras inadequadas para a requerente, assim como na fase adolescente em que houve a atração por mulheres e por conseguinte o relacionamento com as mesmas, onde sempre há um certo enfrentamento na família e sociedade.

Socialmente a requerente, com 20 anos, já era vista como do sexo masculino por todos, e aos 22 anos fixou união estável com a sua atual esposa. Aos 30 anos, depois de diversos episódios vexatórios e constrangedores, trazendo danos psicológicos para a requerente, ela decidiu realizar a cirurgia de mastectomia, para a retirada dos seios, e realiza tratamento hormonal para se assemelhar ao gênero masculino.

Mesmo com todas essas iniciativas para melhorar sua vida pessoal e social, a situação constrangedora ainda pairava na documentação apresentada pela cidadã, onde havia fisionomia e roupas completamente diversas da realidade. Por isso, houve a decisão de requerer na justiça seus direitos subjetivos em retificar no registro de nascimento e outros documentos seu nome e gênero sexual.

O processo de número 0700148-46.2012.8.01.0001 da 2º Vara de Família da Comarca de Rio Branco, no estado do Acre, onde o responsável pela decisão foi o Juiz de Direito Fernando Nóbrega da Silva, teve a sentença favorável à requerente. Após passar pelo acompanhamento de profissionais da área da saúde, foi diagnosticado o transexualismo e mesmo não havendo a cirurgia de troca de sexo, não houve óbice para a retificação pleiteada. 

Após a comprovação por laudos genéticos, psicológicos e sociais, o Ministério Público se manifestou de forma favorável ao pedido exposto pela requerente, possibilitando sua vivência digna conforme sua real personalidade, colaborando para a formação da jurisprudência que vem dominando o ordenamento jurídico brasileiro. De acordo com a autora Maria Berenice Dias:

A função judicial é assegurar direitos, e não bani-los pelo simples fato de determinadas posturas se afastarem do que se convencionou chamar de normal (...) A identificação do sexo é feita no momento do nascimento pelos caracteres anatômicos, registrando-se o indivíduo como pertencente a um ou a outro sexo exclusivamente pela genitália exterior. No entanto, a determinação do gênero não decorre exclusivamente das características anatômicas, não se podendo mais considerar o conceito de sexo fora de uma apreciação plurivetorial, resultante de fatores genéticos, somáticos, psicológicos e sociais. Eventual incoincidência entre o sexo aparente e o psicológico gera problemas de diversas ordens. Além de um severo conflito individual, há repercussões nas áreas médica e jurídica, pois o transexual tem a sensação de que a biologia se equivocou com ele. Mesmo frente às limitações e restrições legais, vem a Justiça decidindo favoravelmente, sendo autorizada a alteração tanto do nome como do sexo, sob o fundamento de que nada mais razoável, humano e justo, que se agrupe o indivíduo no gênero sexual que melhor se identifique, maior conforto e conveniência lhe traga, constituindo-se tudo isto num direito subjetivo seu.

Embora o ordenamento jurídico não traga de forma expressa a possibilidade de modificação do nome e gênero sexual em benefício do transexual, as jurisprudências e doutrinas estão no sentido de que os aplicadores do direito devem se amparar nos princípios basilares da Constituição Federal, como por exemplo: o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o da Isonomia, tendo em vista a humilhação no dia a dia que um transexual sofre por possuir características físicas do sexo oposto ao que se encontra averbado no registro de nascimento e demais documentos. 

O princípio da Dignidade da Pessoa Humana está previsto no artigo 1º, III da CF, e o princípio da isonomia no artigo 5º, X:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;


A LINDB em seu artigo 4º diz que: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”, e no seu artigo 5º: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

A decisão de conceder as alterações não depende da cirurgia de mudança de sexo, pois, a resolução CFM nº 1955/2010, que trata da cirurgia de transgenitalismo apenas autoriza, experimentalmente, a realização do procedimento cirúrgico do tipo neofaloplastia, por isso, seria totalmente implausível apresentar essa condição de cirurgia (com o fim terapêutico) para conseguir a alteração de sexo e nome.

Conforme o discorrido, se faz necessário demonstrar de forma evidente todos os direitos constitucionais e os que decorrem das diversas fontes que permeiam a vida de um transexual. De plano, verifica-se o direito de personalidade, o qual se anexa à integridade física e moral do indivíduo, o que ressalta o fato de que o ordenamento jurídico brasileiro preza essencialmente pelo equilíbrio entre os estados psicológicos e físicos do povo, o que unifica o sexo externado para o globo aliado ao sexo escolhido e sentido pelo indivíduo, ou seja: como ele se identifica internamente. 

Nesta maneira, infere-se que existe uma base de solidificação extremamente importante de ser compreendida, pois a Constituição Federal no seu art. , IV prima pela identidade de gênero e é a base que equilibra o direito à saúde, à personalidade e integridade do indivíduo transexual. Portanto, unindo esses direitos, presume-se formado o direito à igualdade, o respeito entre as comunidades e a ausência de discriminação, haja vista o princípio da livre espontaneidade sexual. Nesse sentido, afirma-se que os direitos que tangem a pessoa transexual estão contidos tanto na CF, como nas normas infraconstitucionais, exemplo: o próprio Código Civil reservou uma parte específica para tratar dos direitos personalíssimos. E é nessa acepção que resta verificado o fato de que o transexual se adequa aos direitos da personalidade, primeiramente porque todos são iguais em face da lei e que não faria o menor sentido não garantir o direito à vida, felicidade integral e a liberdade individual de uma pessoa pelo fato da transexualidade.

Contudo, como tudo no Direito, existem divergências e conflitos doutrinários, especialmente entre a doutrina mais conservadora, atrelada a concepções ultrapassadas e céticas, haja vista que limitam o direito à saúde afirmando que esse direito se restringe somente ao ambiente físico, porém, como de conhecimento amplo e geral, a vida de um transexual é extremamente complexa, podendo, em algumas das vezes, se equiparar a um indivíduo intersexuado. E é por essa lógica que este artigo não se filia a essas doutrinas arcaicas, até porque o próprio Conselho Federal de Medicina, através da Resolução 1955/10, passou a admitir a cirurgia de redesignação sexual como um procedimento correto, atrelado ao princípio da dignidade da pessoa humana e da sua liberdade, constando no artigo 1º da CF, garantindo assim um amparo na lei para uma eventual cirurgia de mudança de sexo. 

Não obstante, a situação quanto ao transexual, no mundo jurídico, após a realização do procedimento cirúrgico de redesignação de sexo acaba trazendo consigo diversos direitos integrados a pessoa trans, haja vista que após o ato ele será visto de outro gênero e que precisará passar por diversos outros tratamentos como inclusão social, por exemplo. Seus direitos personalíssimos, mais do que nunca devem se fazer presentes pois, após a cirurgia o indivíduo passa por uma fase conturbada e necessita de tratamento hormonal e o referido procedimento ainda é muito caro, tendo em vista a ausência de atenção sobre o assunto.

Vale destacar que em 2009, a Procuradoria Geral da República ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade sobre a LRP, pleiteando a forma de interpretação de modo a garantir a alteração do nome e sexo no registro de nascimento mesmo sem a presença de cirurgia de mudança de sexo. A procuradoria relatou que o direito subjetivo do gênero engloba os princípios constitucionais de dignidade, igualdade e da vedação às discriminações odiosas, de liberdade e privacidade.

Em todo o território nacional, ainda existem magistrados que se prendem ao fato de que o sexo biológico é o que define o nome da pessoa. Por isso, o STF, impedindo a arbitrariedade desenfreada, decidiu com base em dois processos de nítida repercussão geral da causa, que tratavam da mudança de nome e sexo de pessoas transexuais, que esses indivíduos, sendo maiores de idade, poderão alterar o nome e o sexo presentes no registro de nascimento sem precisar pleitear junto ao judiciário. Indo além, o STF englobou não só os transexuais, mas também os intersexuais, adotando o termo transgêneros para universalidade dos tipos.

O Supremo Tribunal Federal entende que a modificação nos documentos, como já exposto, não condiciona à exigência de alterações corporais por meio de cirurgias ou terapias hormonais, e inova ao dizer que não é necessária a apresentação de laudos médicos e psicológicos para obter o direito subjetivo, bastando que se autodeclare transexual. De acordo com o Ministro Edson Fachin:

A alteração dos assentos no registro público depende apenas da livre manifestação de vontade da pessoa que visa expressar sua identidade de gênero. A pessoa não deve provar o que é e o Estado não deve condicionar a expressão da identidade a qualquer tipo de modelo, ainda que meramente procedimental.


A decisão exposta foi de cunho revolucionário no âmbito jurisdicional, ficando também decidido que não haverá necessidade de emitir nova certidão de nascimento pelos cartórios, pois os dados da original serão modificados sob sigilo. Ou seja, o princípio da publicidade dos registros públicos perde na balança para o princípio da privacidade. De acordo com Maria Helena Diniz, deve haver uma adequação do prenome ao sexo atual sem qualquer referência que discrimine no documento de identidade ou qualquer outro, pois impediria a plena socialização e o direito ao esquecimento do estado anterior que lhe causou tanto sofrimento.

O judiciário acreano revoluciona mais uma vez, à época, e não se limita a concepções ultrapassadas. Sobretudo no Direito de Família resta verificado que os magistrados acreanos estão voltados a desconstruir preconceitos. Subtende-se que o julgamento do Juiz de Direito Fernando Nóbrega da Silva visou, acima de tudo, a inclusão da requerente num novo contexto existencial, sem qualquer discriminação nos registros, onde se confere ao indivíduo novo status adquirido e não com o intuito de o deixar à margem de situações vexatórias se a mesma prosseguisse com o nome biológico incompatível com o seu sexo psíquico. Posto isso, não trata-se de simples pedido de retificação no registro, e sim de modificação do estado individual da pessoa, que a insere na categoria própria da sua identidade sexual, assim, conforme José Maria Leoni Lopes de Oliveira ensina, a ação é de competência da Vara de Família.


Com base no que fora esmiuçado neste artigo, consolida-se com os entendimentos da renomada doutrinadora Maria Helena Diniz pois a mesma afirma que a adequação entre gênero e nome da pessoa transexual deve ocorrer em todo e qualquer documento, sem qualquer grau de discriminação. Logo, é evidente a necessidade da criação de lei regulamentadora sobre a identidade de gênero, desde que a mesma lei venha pelejar pelo equilíbrio entre físico e psíquico dos indivíduos transexuais. 






BIBLIOGRAFIA

Concurseria. Transexualidade e o direito constitucional à mudança da identidade civil. Disponível em: <https://concurseria.com.br/blog/transexualidade-e-o-direito-constitucional-mudanca-da-identidade-civil/> Acesso em: outubro de 2018.

DireitoNet. Rafael Henrique Gonçalves Martines. Os principais direitos e os problemas enfrentados pelos transexuais. Disponível em: Acesso em: outubro de 2018.

Jusbrasil. André Luis Morales de Andrade. Direitos e garantias fundamentais dos transexuais. Disponível em: <https://aamorales90.jusbrasil.com.br/artigos/245507209/direitos-e-garantias-fundamentais-dos-transexuais> Acesso em: outubro de 2018.

Jusbrasil. Guilherme Fajardo Bianque. O transexual e o Direito brasileiro. Disponível em: <https://guifajardo.jusbrasil.com.br/artigos/336214327/o-transexual-e-o-direito-brasileiro> Acesso em: outubro de 2018.

Maria Berenice Dias. Transexualidade e o direito de casar. Disponível em: Acesso em: outubro de 2018.

Nexo. André Cabette Fábio. STF permite a trans mudarem nome e gênero direto no cartório. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/03/02/STF-permite-a-trans-mudarem-nome-e-g%C3%AAnero-direto-no-cart%C3%B3rio> Acesso em: outubro de 2018.

O globo. Adriana Mendes e Paula Ferreira. Transexuais já podem mudar nome em documentos nos cartórios de todo país. Disponível em: Acesso em: outubro de 2018.


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